"Enquanto não conseguirmos suprimir qualquer uma das causas do desespero humano, não teremos o direito de tentar a supressão dos meios pelos quais o homem tenta se livrar do desespero."
Antonin Artaud

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Paêbirú - Lula Côrtes e Zé Ramalho - 1975


Ao escutar o disco Paêbirú, de Lula Côrtes e Zé Ramalho, fui acometido por uma sensação que não me é estranha, posto que é por mim já conhecida há um tempo, mas que, no entanto, se faz rara e carrega um viés de fantástica e, ademais, um tanto psicodélica - naquele sentido peculiar da atmosfera quase-líquida, das matérias-em-derretendo, do pensamento abrangente e uno, da consciência universal.
Lembrei e amei muito os amigos que participaram, os pastos invernais do interior do estado ou as areias minimamente sedimentadas das praias do litoral, a observar um pôr-do-sol como um ancestral que vive da natureza, na natureza e pela natureza - pois assim sentem-se os sensíveis - me vi num fluxo de pensamento peculiar aos amigos mais próximos (provavelmente os poucos a compreender minha brevíssima tentativa de tradução daqueles momentos).
Um nascer do sol com a lua ainda a se aproximar do horizonte oposto, banhado por uma chuva macia e acolhedora. Roupa soa estranho, cidade soa grosseiro.
Paêbirú me foi nostálgico de uma maneira que não conhecia a nostalgia: pois nunca tinha escutado este álbum antes para caracterizar de fato uma "nostalgia". Mas me propôs e me remeteu a todos estes momentos que coloquei e a tantos mais, intraduzíveis, indizíveis, por mais que me esforce para alcançálos através da palavra.
Ademais, a vontade que me arremete é a vontade de estar na chuva gargalhando - e existindo como nunca.
Vejo um brilho na música antes nunca alcançado por nada, senão pela própria música e seus sensíveis.

Download no link que segue: Lula Côrtes & Zé Ramalho - Paêbirú (1975).

informação sobre o álbum: http://brnuggets.blogspot.com/2006/10/lula-crtes-z-ramalho-pabir-1975.html



marcus.

traduzir - saramago também o pensa assim

O discurso de saramago dialoga diretamente com a opinião que partilho e que partilhamos sobre tal assunto. (marcus):

Traduzir

Julho 2, 2009 by José Saramago

Escrever é traduzir. Sempre o será. Mesmo quando estivermos a utilizar a nossa própria língua. Transportamos o que vemos e o que sentimos (supondo que o ver e o sentir, como em geral os entendemos, sejam algo mais que as palavras com o que nos vem sendo relativamente possível expressar o visto e o sentido…) para um código convencional de signos, a escrita, e deixamos às circunstâncias e aos acasos da comunicação a responsabilidade de fazer chegar à inteligência do leitor, não a integridade da experiência que nos propusemos transmitir (inevitavelmente parcelar em relação à realidade de que se havia alimentado), mas ao menos uma sombra do que no fundo do nosso espírito sabemos ser intraduzível, por exemplo, a emoção pura de um encontro, o deslumbramento de uma descoberta, esse instante fugaz de silêncio anterior à palavra que vai ficar na memória como o resto de um sonho que o tempo não apagará por completo.

O trabalho de quem traduz consistirá, portanto, em passar a outro idioma (em princípio, o seu próprio) aquilo que na obra e no idioma originais já havia sido “tradução”, isto é, uma determinada percepção de uma realidade social, histórica, ideológica e cultural que não é a do tradutor, substanciada, essa percepção, num entramado linguístico e semântico que igualmente não é o seu. O texto original representa unicamente uma das “traduções” possíveis da experiência da realidade do autor, estando o tradutor obrigado a converter o “texto-tradução” em “tradução-texto”, inevitavelmente ambivalente, porquanto, depois de ter começado por captar a experiência da realidade objecto da sua atenção, o tradutor realiza o trabalho maior de transportá-la intacta para o entramado linguístico e semântico da realidade (outra) para que está encarregado de traduzir, respeitando, ao mesmo tempo, o lugar de onde veio e o lugar para onde vai. Para o tradutor, o instante do silêncio anterior à palavra é pois como o limiar de uma passagem “alquímica” em que o que é precisa de se transformar noutra coisa para continuar a ser o que havia sido. O diálogo entre o autor e o tradutor, na relação entre o texto que é e o texto a ser, não é apenas entre duas personalidades particulares que hão-de completar-se, é sobretudo um encontro entre duas culturas colectivas que devem reconhecer-se.

Publicado em O Caderno de Saramago |