Quando a emotividade é uma filosofia fisiológica.
A emotividade que antecede os minutos do sono, ou o silêncio da noite, no silêncio de si, que não consegue resistir (silenciosamente) ao claro do dia e a agitação própria, é uma filosofia fisiológica; tudo que caracteriza a face de um palhaço. Essa sua filosofia é a sua faca, no sentido de que para alguns somente assim é possível se permitir “intimamente” a questões sobre si, e até mesmo sobre si para o outro, para o mundo, de modo que quando o dia nasce às palavras, pode-se ser queimada àquela imagem, se ganha aspecto risonho à conduta de crueza emotiva através do novo homor que padeceu o tal "pesar". O termo fisiológico é bem empregado pela sua justificação da abertura - através dessa “faca” - no momento de inércia da mente e descanso do corpo – ou antagônico a isso (através da tinta) no caso do palhaço e sua atuação-, que dá passagem a sua “filosofia do corte” no ato de ser. Porque é nisso que resulta. Se feito e dito é o que acontece quando já à luz do dia - quando mesmo já sem máscara-, ai realmente se soa honestamente interno, de alma, para o outro e para o mundo, causando seu efeito puro. Perdido de roupagem fictícia vindo à tona com cara para os olhos, cru.
Mas, roupagem fictícia? Crueza? Quem disse que o outro é senão um palhaço constante trazendo você para seu show, como um solitário experimental? O tolo não hesita à máscara do outro.
Rodrigo
quinta-feira, 21 de agosto de 2008
domingo, 10 de agosto de 2008
quarta-feira, 6 de agosto de 2008
Antonin Artaud
Tenho a intenção declarada de encerrar o assunto de uma vez por todas, para que não venham mais nos encher a paciência com os assim chamados perigos da droga.
Meu ponto de vista é nitidamente anti-social. Só há uma razão para atacar o ópio. Aquela do perigo que seu uso acarreta ao conjunto da sociedade. Acontece que este perigo é falso. Nascemos podres de corpo e alma, somos congenitamente inadaptados; suprimam o ópio não suprimirão a necessidade do crime, os cânceres do corpo e da alma, a inclinação para o desespero, o cretinismo inato, a sífilis hereditária, a fragilidade dos instintos; não impedirão que haja almas destinadas a seja qual for o veneno, veneno da morfina, veneno da leitura, veneno do isolamento, veneno do onanismo, veneno dos coitos repetidos, veneno da arraigada fraqueza da alma, veneno do álcool, veneno do tabaco, veneno da anti-sociabilidade.
Há almas incuráveis e perdidas para o restante da sociedade. Suprimam-lhes um dos meios para chegar à loucura: inventarão dez mil outros. Criarão meios mais sutis, mais selvagens; meios absolutamente desesperados.
A própria natureza é antisocial na sua essência - só por uma usurpação de poderes que o corpo da sociedade consegue reagir contra a tendência natural da humanidade. Deixemos que os perdidos se percam: temos mais o que fazer que tentar uma recuperação impossível e ademais inútil, odiosa e prejudicial.
Enquanto não conseguirmos suprimir qualquer uma das causas do desespero humano, não teremos o direito de tentar a supressão dos meios pelos quais o homem tenta se livrar do desespero. Pois seria preciso, inicialmente, suprimir esse impulso natural e oculto, essa tendência ilusória do homem que o leva a buscar um meio, que lhe dá a idéia de buscar um meio para fugir às suas dores. Além do mais, os perdidos são perdidos por sua própria natureza; todas as idéias de regeneração moral de nada servem; há um determinismo inato, há uma incurabilidade definitiva no suicídio, no crime, na idiotia na loucura; há uma invencível corneação entre os homens; há uma fragilidade do caráter; há uma castração do espírito.
A afasia existe; a tabes dorsalis existe; a meningite sifilítica, o roubo, a usurpação. O inferno já é deste mundo e há homens que são desgraçados, fugitivos do inferno, foragidos destinados a recomeçar eternamente sua fuga. E por aí afora.
O homem é miserável, a carne é fraca, há homens que sempre se perderão. Pouco importam os meios para perder-se: a sociedade nada tem a ver com isso. Demonstramos - não é? - que ela nada pode, que ela perde seu tempo, que ela apenas insiste em arraigar-se na sua estupidez. Aqueles que ousam encarar os fatos de frente sabem - não é verdade? – os resultados na proibição no álcool nos Estados Unidos. Uma superprodução da loucura: cerveja com éter, álcool carregado com cocaína vendido clandestinamente, o pileque multiplicado, uma espécie de porre coletivo. Em suma, a lei do fruto proibido.
A mesma coisa com o ópio. A proibição, que multiplica a curiosidade, só serviu aos rufiões da medicina, do jornalismo, da literatura. Há pessoas que construíram fecais e industriosas reputações sobre sua pretensa indignação contra a inofensiva e ínfima seita dos amaldiçoados da droga (inofensiva porque ínfima e porque sempre uma exceção), essa minoria de amaldiçoados em espírito, alma e doença. Ah! Como o cordão umbilical da moralidade está bem atado neles! Desde a salda do ventre materno - não é? - jamais pecaram. São apóstolos, descendentes de sacerdotes: só falta saber como se abastecem da sua indignação, quanto levam nessa, o que ganham com isso. E, de qualquer forma, essa não é a questão. Na verdade, o furor contra o tóxico e as estúpidas leis que vêm daí:
1º É inoperante contra a necessidade do tóxico que, saciada ou insaciada, é inata à alma e induziria a gestos decididamente anti-sociais mesmo se o tóxico não existisse.
2º Exaspera a necessidade social do tóxico e o transforma em vício secreto.
3º Agrava a doença real e esta é a verdadeira questão, o nó vital, o ponto crucial: Desgraçadamente para a doença, a medicina existe.
Todas as leis, todas as restrições, todas as campanhas contra os estupefacientes somente conseguirão subtrair a todos os necessitados da dor humana, que têm direitos imprescritíveis no plano social, o lenitivo dos seus sofrimentos, um alimento que para eles é mais maravilhoso que o pão, e o meio, enfim, de reingressar na vida. Antes a peste que a morfina, uiva a medicina oficial; antes o inferno que a vida. Só imbecis como J. P. Liausu (que além disso é um monstrengo ignorante)* para querer que os doentes se macerem na sua doença. E é aqui que a canalhice do personagem abre o jogo e diz a que vem: em nome, pretende ele, do bem coletivo. Suicidem-se, desesperados, e vocês, torturados de corpo e alma, percam a esperança. Não há mais salvação no mundo. O mundo vive dos seus matadouros. E vocês, loucos lúcidos, sifilíticos, cancerosos, meningíticos crônicos, vocês são incompreendidos. Há um ponto em vocês que médico algum jamais entenderá e é este ponto, a meu ver, que os salva e torna augustos, puros e maravilhosos: vocês estão além da vida, seus males são desconhecidos pelo homem comum, vocês ultrapassaram o plano da normalidade e daí a severidade demonstrada pelos homens, vocês envenenam sua tranqüilidade, corroem sua estabilidade. Suas dores irreprimíveis são, em essência, impossíveis de serem enquadradas em qualquer estado conhecido, indescritíveis com palavras. Suas dores repetidas e fugidias, dores insolúveis, dores fora do pensamento, dores que não estão no corpo nem na alma mas que têm a ver com ambos.
E eu, que participo dessas dores, pergunto, quem ousaria dosar nosso calmante? Em nome de que clareza superior, almas nossas, nós que estamos na verdadeira raiz da clareza e do conhecimento? E isso, pela nossa postura, pela nossa insistência em sofrer. Nós, a quem a dor fez viajar por nossas almas em busca de um lugar mais tranqüilo ao qual pudéssemos nos agarrar, em busca da estabilidade no sofrimento como os outros no bem-estar.
Não somos loucos, somos médicos maravilhosos, conhecemos a dosagem da alma, da sensibilidade, da medula, do pensamento. Que nos deixem em paz, que deixem os doentes em paz, nada pedimos aos homens, só queremos o alívio das nossas dores. Avaliamos nossas vidas, sabemos que elas admitem restrições da parte dos demais e, principalmente, da nossa parte. Sabemos a que concessões, a que renúncias a nós mesmos, a que paralisias da sutileza nosso mal nos obriga a cada dia. Por enquanto, não nos suicidaremos. Esperando que nos deixem em paz.
* J.P. Liausu: intelectual conservador que chefiou uma campanha anti-cocaína na época.
Texto de Antonin Artaud
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