sexta-feira, 21 de maio de 2010
força estranha
uma cantora popular, um compositor popular, no entanto, uma sensibilidade tamanha. quando me percebi, estava com os olhos úmidos acompanhado da sensação de compreender a beleza que há no "existir" e no estar "atento e sensível" - através dos óculos maravilhosos da arte, ou seja, senti que ao encararmos o comum como singular, único, e o cotidiano com beleza e poesia, as palavras se tornam apenas escadas que podemos dispensar e continuar subindo... como grandes poetas o fazem - e o são também os que percebem a poesia no mundo, seja na palavra, seja numa paisagem, seja num gesto ou num rosto: poetas."estive no fundo de cada vontade encoberta". não compreendo como pessoas podem viver sem percebê-lo.
este, que escreveu tal poesia musicada, se chama caetano, e aqui está o meu motivo de hoje:
"Eu vi um menino correndo
eu vi o tempo brincando ao redor
do caminho daquele menino,
eu pus os meus pés no riacho.
E acho que nunca os tirei.
O sol ainda brilha na estrada que eu nunca passei.
Eu vi a mulher preparando outra pessoa
O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga.
A vida é amiga da arte
É a parte que o sol me ensinou.
O sol que atravessa essa estrada que nunca passou.
Por isso uma força me leva a cantar,
por isso essa força estranha no ar.
Por isso é que eu canto, não posso parar.
Por isso essa voz tamanha.
Eu vi muitos cabelos brancos na fonte do artista
o tempo não pára no entanto ele nunca envelhece.
Aquele que conhece o jogo, o jogo das coisas que são.
É o sol, é o tempo, é a estrada, é o pé e é o chão.
Eu vi muitos homens brigando. Ouvi seus gritos
Estive no fundo de cada vontade encoberta,
e a coisa mais certa de todas as coisas
não vale um caminho sob o sol.
E o sol sobre a estrada, é o sol sobre a estrada, é o sol.
Por isso uma força me leva a cantar,
por isso essa força estranha no ar.
Por isso é que eu canto, não posso parar.
Por isso essa voz tamanha."
marcus de barros. maio, 2010
quarta-feira, 5 de maio de 2010
"O indivíduo quer ser alguém" (Paulo Gaudêncio, Tom Zé)
Tom Zé no quadro arquivo do Radiola na TV Cultura - música "A Gravata".
(Não descobri a data desta gravação, mas imagino que esteja entre 68 e 71, 72...)
Quero compartilhar também o texto escrito na contra-capa do primeiro LP do Tom Zé, de 1968 (que acabo de descobrir e ler).
"Somos um povo infeliz, bombardeado pela felicidade. O sorriso deve ser muito velho, apenas ganhou novas atribuições. Hoje, industrializado, procurado, fotografado, caro (às vezes), o sorriso vende. Vende creme dental, passagens, analgésicos, fraldas, etc. E como a realidade sempre se confundiu com os gestos, a televisão prova diariamente, que ninguém mais pode ser infeliz. Entretanto, quando os sorrisos descuidam, os noticiários mostram muita miséria. Enfim, somos um povo infeliz, bombardeado pela felicidade.(As vezes por outras coisas também). É que o cordeiro, de Deus convive com os pecados do mundo. E até já ganhou uma condecoração. Resta o catecismo, e nós todos perdidos. Os inocentes ainda não descobriram que se conseguiu apaziguar Cristo com os privilégios. (Naturalmente Cristo não foi consultado). Adormecemos em berço esplêndido e acordamos cremedentalizados, tergalizados, yêyêlizados, sambatizados e missificados pela nossa própria máquina deteriorada de pensar. "-Você é compositor de música "jovem" ou de música "Brasileira"?" A alternativa é falsa para quem não aceita a juventude contraposta à brasilidade.. (Não interessa a conotação que emprestam à primeira palavra). Eu sou a fúria quatrocentona de uma decadência perfumada com boas maneiras e não quero amarrar minha obra num passado de laço de fita com boemias seresteiras. Pois é que quando eu abri os olhos e vi, tive muito medo: pensei que todos iriam corar de vergonha, numa danação dilacerante. Qual nada. A hipocrisia (é com z?) já havia atingido a indiferença divina da anestesia... E assistindo a tudo da sacada dos palacetes, o espelho mentiroso de mil olhos de múmias embalsamadas, que procurava retratar-me como um delinquente. Aqui, nesta sobremesa de preto pastel recheado com versos musicados e venenosos, eu lhes devolvo a imagem. Providenciem escudos, bandeiras, tranquilizantes, antiácidos, antifiséticos e reguladores intestinais. Amém.
TOM ZÉ
P.S.: Nobili, Bernardo, Corisco, João Araújo, Shapiro, Satoru, Gauss, Os Versáteis, Os Brazões, Guilherme Araújo, O Quartetão, Sandino e Cozzela, (todos de avental) fizeram este pastel comigo.
A sociedade vai ter uma dor de barriga moral
O mesmo" (Tom Zé - 1968, contracapa do LP)
marcus de barros
terça-feira, 4 de maio de 2010
Dez clássicos para reler (por Pedro Maciel)
Hoje, me deparei com esse texto e, além da súbita percepção de que ele poderia adornar minha agenda, tive vontade repentina de compartilhá-lo com vocês, amigos.
Outro comentário que julgo importante para esse instante que escrevo é que este site, onde encontrei o texto referido, é excepcional - contém muita coisa boa (boa de verdade, a julgar pelo nome): http://www.cronopios.com.br. Vale tê-lo como favorito daqueles que se lê quase todos os dias.
Postagem "copiada" por: Marcus de Barros - contribuição para o Peixebola. Agradeço o autor do texto que segue, mesmo sem o conhecimento do mesmo - agradecem os interessados.
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Por Pedro Maciel
O que entendemos como um livro clássico? Este adjetivo descende do latim classis, frota, ordem. Chama-se de clássico um livro que “as gerações dos homens, urgidos por razões diversas, lêem com prévio fervor e com uma misteriosa lealdade”, anotou Jorge Luis Borges. O clássico nos ensina algo universal que, de certa forma, nos liga a uma vivência particular. Reler o clássico é descobrir nas dobras da memória não só a história do passado mas sobretudo o enredo de um provável futuro das relações humanas.
“Ulisses”, romance-experiência de James Joyce, escrito entre 1914-1921, é uma obra fundamental da ficção do século XX. Joyce ousou inventar uma prosa-poética que ainda hoje é vista com estranhamento pelas cabeças normais do público leitor. “Ulisses” recupera a linguagem em seu estado natural, anterior à gramática. O ritmo não é medida _ como muitos pensam _ mas tempo original e, ainda, uma maneira de ver o mundo.
Outro clássico que se revela inédito a cada releitura é “Grande Sertão Veredas” (1956), de Guimarães Rosa. Este romance é o grande marco inovador na literatura brasileira de todos os tempos. Rosa retrata um país arcaico, sem passado ou futuro, um país que ensina quem somos. O texto é uma reescritura dos romances medievais (modelo barroco), épico, discussão entre Deus e o diabo.
“Os Sertões”, de Euclides da Cunha, é um livro que nos ensina algo que não sabíamos, descobrimos nele algo que sempre soubéramos ou acreditávamos saber... Euclides, com sua escrita virtuosística, faz uma interpretação histórica do País a partir da cultura do sertão. Canudos é uma idéia euclidiana da desilusão da utopia republicana. Narrativa da realidade social e cultural de um povo deslumbrado, cego pela fé religiosa e que preferiu se consumir no fogo, para reviver a maldição bíblica.
“Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1880), de Machado de Assis, é um exemplo de clássico que precisou de tempo para encontrar o seu lugar certo. O romance em forma de monólogo autobiográfico é um divisor na obra de Machado. O bruxo do Cosme liberta-se do romantismo e inaugura o estilo realista que aborda temas como adultério, hipocrisia e egoísmo. Mas Machado rejeita tanto o determinismo social quanto a prosa descritiva dos realistas, segundo os críticos. A prosa machadiana, narrativa não-linear, original e radicalmente cética, nos revela a dimensão fundamental do tempo, dá sentido à vida banal e ordinária através da experiência humana.
Segundo Ezra Pound, mestres são os “homens que combinaram um certo número de tais processos e que os usaram tão bem ou melhor que os inventores”. Franz Kafka é um dos mestres deste século, autor de “Metamorfose”, texto singular da literatura universal. O anti-herói Joseph K. nos leva a descobrir a história dos pesadelos do mundo moderno. A subordinação e as situações intoleráveis são as idéias centrais da narrativa. Pode-se afirmar que este romance expressa o fantástico, o incompreensível, a opressão, o estranho e a sátira ao invés do patético. O texto desmistifica a organização social que se perpetua, graças a paciência dos subordinados que morrem sem imaginar os seus direitos.
Outro livro que merece ser relido, (clássico é o livro que estamos sempre relendo...), é “As Mil e Uma Noites”, texto estabelecido a partir dos manuscritos originais por René R. Khawam. Na época provável em que se redigiram as “Mil e Uma Noites” (século XIII), o Islã atravessava uma crise, o poder era contestado e havia ameaças nas fronteiras, segundo historiadores. As aventuras da bela Xerazade e os contos narrados para entreter seu interlocutor, o sultão Xeriar, é um conjunto de novelas exemplares situado entre os “livros permanentes” da história da literatura.
“Eupalinos ou O arquiteto _ Escritos de circunstância” (1921), de Paul Valéry, reflete sobre o processo de criação arquitetônica. Valéry, poeta-crítico, cria um clássico a partir de um diálogo imaginário entre Sócrates e Fedro. “Dialogue des morts”, era como seria chamado o texto em sua primeira edição. Fedro e Sócrates habitam nas noites alucinadas do inferno. Pairam sobre eles a idéia da reflexão dos mortos. Uma idéia assombrada. Conversam sobre as limitações e emoções de uma vida que poderia ter sido.
“Uma Temporada no Inferno & Iluminações”, de Arthur Rimbaud, inaugurou a literatura do desespero, do assombro, do inconformismo, da beleza perdida, do visível e do imaginário. Segundo George Steiner, Rimbaud “deixou sua impressão digital na linguagem, no nome e no temperamento do poeta moderno, como Cézanne o fez com as maçãs”.
Virginia Woolf é conhecida sobretudo como uma romancista que aperfeiçoou modernas técnicas de narrar, como as do monólogo interior e do fluxo de consciência. “Orlando”, de Woolf, é o romance mais popular da escritora, mas o texto mais inovador e revolucionário em termos de forma é “As ondas”, em que o cotidiano dispensa enredo, ação, e surge de puras sensações.
Outro clássico da literatura moderna é “O Estrangeiro”, de Albert Camus. O escritor franco-argelino explora os temas que sempre o atormentaram, como a solidão, o destino do homem diante do mundo indiferente e o absurdo da condição humana. Camus descreve a “doença do espírito” de que sofrem os tempos atuais. “O absurdo nasce da confrontação do apelo humano com o silêncio despropositado do mundo”. Através do “absurdo” o autor decifra o verdadeiro sentido da vida. Mas a vida, segundo Camus, será vivida melhor ainda se não tiver sentido.
Pedro Maciel é autor do romance Como deixei de ser Deus (Editora Topbooks, 2009). Segundo o filósofo e poeta Antonio Cícero, “de certo modo, é o tempo o verdadeiro tema desse livro, que pode ser considerado uma espécie de Bildungsroman, isto é, de romance de educação ou formação. Pode-se dizer que é justamente a intensa capacidade de instigar a sensibilidade, o pensamento e a imaginação que constitui um dos maiores encantos de Como deixei de ser Deus”. Já o escritor Moacyr Scliar diz que, “Como deixei de ser Deus foi para mim uma gratíssima surpresa, pela originalidade, pela profundidade e pela transcendência do texto”. Pedro Maciel, segundo o poeta e tradutor Ivo Barroso, "nos faz acreditar que a literatura brasileira possa ainda apresentar alguma coisa de novo que, curiosamente, remonta à própria arte de escrever: o estilo. O seu primeiro romance A Hora dos Náufragos (Bertrand Brasil, 2006) perturba pela força da linguagem. O que há de mais próximo desse livro seriam os famosos fusées de Baudelaire". E-mail: pedro_maciel@uol.com.br
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**PS.: confesso que fiquei fortemente tentado a ler a obra deste Pedro Maciel, a julgar pelo que há neste último parágrafo.
(um eu, Marcus de Barros, conjecturando madrugada adentro...)
sábado, 1 de maio de 2010
A Suposta Existência
Como é o lugar quando ninguém passa por ele?
Existem as coisas
sem ser vistas?
O interior do apartamento desabitado,
a pinça esquecida na gaveta,
os eucaliptos à noite no caminho
três vezes deserto,
a formiga sob a terra no domingo,
os mortos, um minuto
depois de sepultados,
nós, sozinhos
no quarto sem espelho?
Que fazem, que são
as coisas não testadas como coisas,
minerais não descobertos - e algum dia
o serão?
Estrela não pensada,
palavra rascunhada no papel
que nunca ninguém leu?
Existe, existe o mundo
apenas pelo olhar
que o cria e lhe confere
espacialidade?
Concretitude das coisas: falácia
de olho enganador, ouvido falso,
mão que brinca de pegar o não
e pegando-o concede-lhe
a ilusão de forma
e, ilusão maior, a de sentido?
Ou tudo vige
planturosamente, à revelia
de nossa judicial inquirição
e esta apenas existe consentida
pelos elementos inquiridos?
Será tudo talvez hipermercado
de possíveis e impossíveis possibilíssimos
que geram minha fantasia de consciência
enquanto
exercito a mentira de passear
mas passeado sou pelo passeio,
que é o sumo real, a divertir-se
com esta bruma-sonho de sentir-me
e fruir peripécias de passagem?
Eis se delineia
espantosa batalha entre
o ser inventado
e o mundo inventor.
Sou ficção rebelada
contra a mente Universal
e tento construir-me
de novo a cada instante, a cada cólica,
na faina de traçar
meu início só meu
e distender um arco de vontade
para cobrir todo o depósito
de circunstantes coisas soberanas.
A guerra sem mercê, indefinida
prossegue,
feita de negação, armas de dúvida,
táticas a se voltarem contra mim,
teima interrogante de saber
se existe o inimigo, se existimos
ou somos todos uma hipótese
de luta ao sol do dia curto em que lutamos.
De A Paixão Medida, 1980
Carlos Drummond de Andrade
marcus de barros