"Enquanto não conseguirmos suprimir qualquer uma das causas do desespero humano, não teremos o direito de tentar a supressão dos meios pelos quais o homem tenta se livrar do desespero."
Antonin Artaud

sábado, 1 de maio de 2010

A Suposta Existência

A Suposta Existência

Como é o lugar quando ninguém passa por ele?
Existem as coisas
sem ser vistas?

O interior do apartamento desabitado,
a pinça esquecida na gaveta,
os eucaliptos à noite no caminho
três vezes deserto,
a formiga sob a terra no domingo,
os mortos, um minuto
depois de sepultados,
nós, sozinhos
no quarto sem espelho?
Que fazem, que são
as coisas não testadas como coisas,
minerais não descobertos - e algum dia
o serão?

Estrela não pensada,
palavra rascunhada no papel
que nunca ninguém leu?
Existe, existe o mundo
apenas pelo olhar
que o cria e lhe confere
espacialidade?

Concretitude das coisas: falácia
de olho enganador, ouvido falso,
mão que brinca de pegar o não
e pegando-o concede-lhe
a ilusão de forma
e, ilusão maior, a de sentido?

Ou tudo vige
planturosamente, à revelia
de nossa judicial inquirição
e esta apenas existe consentida
pelos elementos inquiridos?
Será tudo talvez hipermercado
de possíveis e impossíveis possibilíssimos
que geram minha fantasia de consciência
enquanto
exercito a mentira de passear
mas passeado sou pelo passeio,
que é o sumo real, a divertir-se
com esta bruma-sonho de sentir-me
e fruir peripécias de passagem?

Eis se delineia
espantosa batalha entre
o ser inventado
e o mundo inventor.
Sou ficção rebelada
contra a mente Universal
e tento construir-me
de novo a cada instante, a cada cólica,
na faina de traçar
meu início só meu
e distender um arco de vontade
para cobrir todo o depósito
de circunstantes coisas soberanas.

A guerra sem mercê, indefinida
prossegue,
feita de negação, armas de dúvida,
táticas a se voltarem contra mim,
teima interrogante de saber
se existe o inimigo, se existimos
ou somos todos uma hipótese
de luta ao sol do dia curto em que lutamos.

De A Paixão Medida, 1980

Carlos Drummond de Andrade







marcus de barros

Um comentário:

Gilson disse...

Excelente contribuição Marquinhos. Já me perguntei se o mundo nasce com a gente, ou se existe uma realidade objetiva lá fora, que me anteceda e permaneça independente da minha própria existência. Pode-se dizer que a realidade e a percepção da realidade é um ato integrado, fenomenológico, que a percepção externa é também interna. Chamamos de realidade o que está ao alcance dos nossos sentidos, mas a realidade não se limita aos nossos sentidos, nem mesmo aos instrumentos que utilizamos para a analisar. Quanto maior o conhecimento do meio onde estamos inseridos, mais ampla a visão do funcionamento do mesmo. Perceber que a mesma natureza que gera o meio gera o ente que se faz dela consciente. Temos ouvidos porque existem freqüências sonoras, temos olhos porque existem fótons, está tudo muito direcionado nos envoltos da existência. Penso que na dissolução das estruturas mentais que nos concedem um senso de individualidade, realmente percebemos quão indissociável o processo da construção de um “eu” é do fluxo que a permeia e a envolve. Concentrando nas freqüências enérgicas que nos compõem, e se permitindo ser, pois estamos aqui para fazer o melhor da experiência.

Muita Paz,
Gilson