"Enquanto não conseguirmos suprimir qualquer uma das causas do desespero humano, não teremos o direito de tentar a supressão dos meios pelos quais o homem tenta se livrar do desespero."
Antonin Artaud

segunda-feira, 30 de março de 2009

A História sem Fim

Existe um livro chamado "A História sem Fim", o qual não li.
Acho que todos lembramos de um filme com o mesmo nome que passava enquanto éramos crianças, onde a maior referência, pra mim, era um cachorro-branco-dragão enorme que voava com um garoto através do tempo (se não me engano).
Ademais, a história é de caráter fantástico, descreve um mundo fantasioso, onde existem seres diferentes, as relações entre estes seres e com o tempo também é diversa da nossa, e todo um enredo atrativo e criativo envolve a obra.
Como não li o livro, não posso afirmar por mim, mas Dona Romênia o leu e afirma ser realmente fantástico, apesar de ser escrito para um público infanto-juvenil à primeira vista.
A densidade da fantasia criativa parece despertar um interesse que transpõe o limite de idade e abrange os interessados por outras realidades, mesmo que literárias.
Me parece ser algo como Alice, do Lewis Carroll, com casca de que é escrito para crianças porém com conteúdo adulto riquíssimo.
Transcrevo uma passagem a qual tive acesso hoje, pelo intermédio da propria Romênia, e que me deixou realmente intrigado e interessado em "entrar" nesse mundo fantasioso de realidade-não-comum proposto por Michael Ende (autor do livro).


" Todas as árvores deste país eram diferentes, tendo cada uma um porte diferente, folhas diferentes, uma casca diferente; ali era possível se ouvir o crescer das árvores como uma música suave que se ouvia ao longe, e os sons emitidos por todas as árvores combinava-se em um todo sonoro, de uma beleza incomparável, inigualada em todo o reino da Fantasia. Não deixava de ser perigoso atravessar esta região, pois muitas pessoas ficavam encantadas com essa música, sentavam-se ali para ouvi-la e se esqueciam de tudo."

Queria perder-me neste bosque e esquecer de tudo como proposto.
Muitas vezes tenho a impressão de que quando esquecemos é que realmente sabemos olhar para as coisas como elas o são de fato, autenticamente.





marcus.

http://rasuralivre.blogspot.com/

Já falei algumas vezes sobre o blog do Dahmer tirinhas "malvados.com.br", do qual gosto bastante e sempre me divirto.
Agora descobri um outro cartoonista (blogueito, chargista, ou todas essas denominações ao mesmo tempo) que mantém o blog "rasuralivre.blogspot.com", que também é muito bom.
Minha intenção aqui é de dividir o entretenimento de bom gosto e culturalmente bem embasado divulgando algumas tirinhas e o endereço do blog.







marcus.

domingo, 29 de março de 2009

O Outro (Jorge Luis Borges)


O Outro (Jorge Luis Borges)


O fato Ocorreu no mês de fevereiro de 1969, ao norte de Boston, em Cambridge. Não o escrevi imediatamente, porque meu primeiro propósito foi esquecê-lo para não perder a razão. Agora, em 1972, penso que, se o escrevo, os outros o lerão como um conto e, com os anos, o será talvez para mim.

Sei que foi quase atroz enquanto durou e mais ainda durante as noites desveladas que o seguiram. Isto não significa que seu relato possa comover a um terceiro.

Seriam dez da manhã. Eu estava recostado em um banco, defronte ao rio Charles. A uns quinhentos metros à minha direita havia um alto edifício cujo nome nunca soube. A água cinzenta carregava grandes pedaços de gelo. Inevitavelmente, o rio fez com que eu pensasse no tempo. A milenar imagem de Heráclito. Eu havia dormido bem; minha aula da tarde anterior havia conseguido, creio, interessar aos alunos. Não havia ninguém à vista.

Senti, de repente, a impressão (que, segundo os psicólogos, corresponde aos estados de fadiga) de já ter vivido aquele momento. Na outra ponta de meu banco, alguém se havia sentado.

Teria preferido estar só, mas não quis levantar em seguida, para não me mostrar descortês. O outro se havia posto a assobiar. Foi então que ocorreu a primeira das muitas inquietações dessa manhã. O que assobiava, o que tentava assobiar (nunca fui muito entoado), era o estilo crioulo de La Tapera de Elias Regules. O estilo me reconduziu a um pátio lá desaparecido e à memória de Álvaro Mellián Lafinur, morto há muitos anos. Logo vieram as palavras. Eram as da décima do princípio. A voz não era a de Álvaro, mas queria parecer-se com a de Álvaro. Reconheci-a com horror.

Aproximei-me e disse-lhe:

- O senhor é oriental ou argentino?

- Argentino, mas desde o ano de 1914 vivo em Genebra - foi a resposta.

Houve um silêncio longo. Perguntei-lhe:

- No número dezessete da Malagnou, em frente à igreja russa?

Respondeu-me que sim.

- Neste caso - disse-lhe resolutamente - o senhor se chama Jorge Luis Borges. Eu também sou Jorge Luis Borges. Estamos em 1969, na cidade de Cambridge.

- Não - respondeu-me com a minha própria voz um pouco distante.

Ao fim de um tempo insistiu:

- Eu estou aqui em Genebra, em um banco, a alguns passos do Ródano. 0 estranho é que nos parecemos, mas o senhor é muito mais velho, com a cabeça grisalha.

Respondi:

- Posso te provar que não minto. Vou te dizer coisas que um desconhecido não pode saber. Lá em casa há uma cuia de prata com um pé de serpentes, que nosso bisavô trouxe do Peru. Há também uma bacia de prata que pendia do arção. No armário do teu quarto, há duas filas de livros. Os três volumes das Mil e Uma Noites de Lane, com gravações em aço e notas em corpo menor entre os capítulos, o dicionário latino de Quicherat, a Germania de Tácito em latim e na versão de Gordon, um Dom Quixote da casa Garnier, as Tábuas de Sangue de Rivera Indarte, o Sartor Resartus de Carlyle, uma biografia de Amiel e, escondido atrás dos demais, um livro em brochura sobre os costumes sexuais dos povos balcânicos. Não esqueci tampouco um entardecer em um primeiro andar da praça Dubourg.

- Dufour - corrigiu.

- Está bem. Dufour. Te basta, tudo isto?

- Não - respondeu. -Essas provas não provam nada. Se eu estou sonhando, é natural que eu saiba o que sei. Seu catálogo prolixo é totalmente vão.

A objeção era justa. Respondi:

- Se esta manhã e este encontro são sonhos, cada um de nós dois tem que pensar que o sonhador é ele. Talvez deixemos de sonhar, talvez não. Nossa evidente obrigação, enquanto isto, é aceitar o sonho, como aceitamos o universo e termos sido engendrados e olharmos com os olhos e respirarmos. - E se o sonho durasse? - disse com ansiedade.

Para tranqüilizá-lo e me tranqüilizar, fingi uma serenidade que certamente eu não sentia. Disse-lhe:

- Meu sonho já durou setenta anos. Afinal de contas, ao rememorar, não há pessoa que não se encontre consigo mesma. É o que nos está, acontecendo agora, só que somos dois. Não queres saber alguma coisa de meu passado, que é o futuro que te espera?

Assentiu sem uma palavra. Prossegui, um pouco perdido:

- A mão está saudável e bem, em sua casa de Charcas y Maipú, em Buenos Aires, mas o pai morreu há uns trinta anos. Morreu do coração. Uma hemiplegia o liquidou; a mão esquerda posta sobre a mão direita era como a mão de uma criança posta sobre a mão de um gigante. Morreu com impaciência de morrer, mas sem uma queixa. Nossa avó havia morrido na mesma casa. Alguns dias antes do fim chamou-nos a todos e disse-nos: '"Sou uma mulher muito velha que está morrendo muito devagar. Que ninguém se perturbe por uma coisa tão comum e corrente". Norah, tua irmã, se casou e tem dois filhos. A propósito, em casa como estão?

- Bem. O pai sempre com seus gracejos contra a fé. Ontem à noite disse que Jesus era como os gaúchos que não querem se comprometer e que, por isto, pregava através de parábolas.

Vacilou e disse:

- E o senhor?

- Não sei o número de livros que escreverás, mas sei que são demasiados. Escreverás poesias que te darão uma satisfação não partilhada e contos de índole fantástica. Darás aulas como teu pai e como tantos outros de nosso sangue.

Agradou-me que nada perguntasse sobre o fracasso ou êxito dos livros. Mudei de tom e prossegui:

- No que se refere à História... Houve outra guerra, quase entre os mesmos antagonistas. A França não tardou a capitular; a Inglaterra e a América travaram contra um ditador alemão, que se chamava Hitler, a cíclica batalha de Waterloo. Buenos Aires, ao redor de mil novecentos e quarenta e seis, engendrou outro Rosas, bastante parecido com nosso parente. Em cinqüenta e cinco, a província de Córdoba nos salvou, como antes Entre Rios. Agora, as coisas andam mal. A Rússia está se apoderando do planeta; a América, travada pela superstição da democracia, não se resolve a ser um império. Cada dia que passa nosso país está mais provinciano, Mais provinciano e mais presunçoso, como se fechasse os olhos. Não me surpreenderia se o ensino do latim fosse substituído pelo do guarani.

Notei que mal me prestava atenção. O medo elementar do impossível, e no entanto certo, o aterrorizava. Eu, que não fui pai, senti por esse pobre moço, mais íntimo que um filho da minha carne, uma onda de amor. Vi que apertava entre as mãos um livro. Perguntei-lhe o que era.

- Os possessos ou, segundo creio, Os Demônios, de Feodor Dostoi- ewski - me replicou não sem vaidade.

- Já o esqueci. Que tal é?

Nem bem o disse, senti que a pergunta era uma blasfêmia.

- O mestre russo - sentenciou - penetrou mais que ninguém nos labirintos da alma eslava.

Essa tentativa retórica me pareceu uma prova de que se havia acalmado.

Perguntei-lhe que outros volumes do mestre havia percorrido. Enumerou dois ou três, entre eles O Sósia.

Perguntei-lhe se, ao lê-los, distinguia bem as personagens, como no caso de Joseph Conrad, e se pensava prosseguir o exame da obra completa.

- A verdade é que não - respondeu-me com uma certa surpresa.

Perguntei-lhe o que estava escrevendo e disse que preparava um livro de versos que se chamaria Os hinos vermelhos. Também havia pensado em Os ritmos vermelhos.

- Por que não? - disse-lhe. - Podes alegar bons anteceden-tes. O verso azul de Rubén Darío e a canção gris de Verlaine.

Sem me fazer caso, esclareceu que seu livro contaria a fraternidade entre todos os homens. O poeta de nosso tempo não pode voltar as costas à sua época.

Fiquei pensando e perguntei-lhe se verdadeiramente se sentia irmão de todos. Por exemplo, de todos os empresários de pompas fúnebres, de todos os carteiros, de todos os escafandristas, de todos os que vivem nas casas de números pares, de todos os afônicos, etc. Disse-me que seu livro se referia à grande massa dos oprimidos e dos párias.

- Tua massa de oprimidos e párias - respondi - não é mais que uma abstração. Só os indivíduos existem, se é que existe alguém. O homem de ontem não é o homem de hoje, sentenciou algum grego. Nós dois, neste banco de Genebra ou Cambridge, somos talvez a prova.

Salvo nas severas páginas da História, os fatos memoráveis prescindem de frases memoráveis. Um homem a ponto de morrer quer se lembrar de uma gravura entrevista na infância; os soldados que estão por entrar na batalha falam do barro ou do sargento. Nossa situação era única e, francamente, não estávamos preparados. Falamos, fatalmente, de literatura; temo não haver dito outras coisas que as que costumo dizer aos jornalistas. Meu alter ego acreditava na invenção ou descobrimento de metáforas novas; eu, nas que correspondem a afinidades íntimas e notórias e que nossa imaginação já aceitou. A velhice dos homens e o acaso, os sonhos e a vida, o correr do tempo e da água. Expus-lhe esta opinião que haveria de expor em um livro anos depois.

Quase não me escutava. De repente, disse:

- Se o senhor foi eu, como explicar que tenha esquecido seu encontro com um senhor de idade que, em 1918, lhe disse que ele também era Borges?

Não havia pensado nessa dificuldade. Respondi, sem convicção:

- Talvez o fato tenha sido tão estranho que eu tenha tratado de esquecê-lo.

Aventurou uma tímida pergunta:

- Como anda sua memória?

Compreendi que, para um moço que não havia feito vinte anos, um homem de mais de setenta era quase um morto. Respondi:

- Costuma parecer-se com o esquecimento, mas ainda encontra o que lhe pedem. Estou estudando anglo-saxão e não sou o último da classe.

Nossa conversação já havia durado demais para ser a de um sonho. Uma súbita idéia me ocorreu.

- Eu posso te provar imediatamente - disse-lhe - que não estás sonhando comigo. Ouve bem este verso, que nunca leste, que eu me lembre.

Lentamente entoei o famoso verso:

L'hydre - univers tordant son corps ecaillé d'astres.

Senti seu quase temeroso estupor. Repetiu-o em voz baixa saboreando cada resplandescente palavra.

- É verdade - balbuciou - Eu não poderei nunca escrever um verso como este.

Antes, ele havia repetido com fervor, agora recordo, aquela breve peça em que Walt Whitman rememora uma noite compartilhada diante do mar em que foi realmente feliz.

- Se Whitman a cantou - observei - é porque a desejava e não aconteceu. O poema ganha se não adivinhamos que é a manifestação de um anelo. Não a história de um fato.

Ficou a me olhar.

- O senhor não o conhece - exclamou.- Whitman é incapaz de mentir.

Meio século não passa em vão. Sob nossa conversação de pessoas de leitura miscelânea e de gostos diversos, compreendi que não podíamos nos entender. Éramos demasiado diferentes e demasiado parecidos. Não podíamos nos enganar, o que torna o diálogo difícil. Cada um de nós dois era o arremedo caricaturesco do outro. A situação era anormal demais para durar muito mais tempo. Aconselhar ou discutir era inútil, porque seu inevitável destino era ser o que sou.

De repente, lembrei uma fantasia de Coleridge. Alguém sonha que atravessa o paraíso e lhe dão como prova uma flor. Ao despertar, ali esta a flor.

Ocorreu-me artifício semelhante.

- Ouve - disse-lhe -, tens algum dinheiro?

- Sim me replicou. - Tenho uns vinte francos. Esta noite convidei Simón Jichlinski ao Crocodile.

- Diz a Simón que exercerá a medicina em Carouge e que fará muito bem... aqora, me dá uma de tua moedas.

Tirou três escudos de poeta e umas peças menores. Sem compreender, me ofereceu um dos primeiros.

Eu lhe estendi uma dessas imprudentes notas americanas que têm valor muito diferente e o mesmo tamanho. Examinou-a com avidez.

- Não pode ser - gritou. - Leva a data de mil novecentos e sessenta e quatro.

(Meses depois, alguém me disse que as notas de banco não levam data.)

- Tudo isto é um milagre - conseguiu dizer - e o milagroso dá medo. Os que foram testemunhas da ressurreição de Lázaro terão ficado horrorizados.

Não mudamos nada, pensei.

Sempre as referências livrescas.

Fez a nota em pedaços e guardou a moeda. Eu resolvi lançá-la ao rio. O arco do escudo de praia perdendo-se no rio de prata teria conferido à minha história uma imagem vivida, mas a sorte não quis assim.

Respondi que o sobrenatural, se ocorre duas vezes, deixa de ser aterrador. Propus a ele que nos víssemos no dia seguinte, nesse mesmo banco que está em dois tempos e dois lugares.

Assentiu logo e me disse, sem olhar o relógio, que já era tarde. Os dois mentíamos e cada qual sabia que seu interlocutor estava mentindo. Disse-lhe que viriam me buscar.

- Buscá-lo? - interrogou.

- Sim. Quando alcançares a minha idade, terás perdido a visão quase por completo. Verás a cor amarela, sombras e luzes. Não te preocupes. A cegueira gradual não é uma coisa trágica. É como um lento entardecer de verão.

Despedimo-nos sem nos termos tocado. No dia seguinte, não fui. O outro tampouco terá ido. Meditei muito sobe esse encontro, que não contei a ninguém. Creio ter descoberto a chave. O encontro foi real, mas o outro conversou comigo em um sonho e foi assim que pude me esquecer. Eu conversei com ele na vigília e a lembrança ainda me atormenta.

O outro me sonhou, mas não me sonhou rigorosamente. Sonhou, agora o entendo, a impossível data no dólar.


(Tradução de Lígia Morrone Averbuck)




marcus.

sábado, 28 de março de 2009

Koyaanisqatsi (1982) - Godfrey Reggio



(Fragmento - 10min - do filme, que originalmente contém 86 minutos acompanhados pela vívida e indispensável trilha sonora do músico Phillip Glass*)

Achei por bem escrever algumas poucas e atabalhoadas considerações sobre um fragmento do filme-documentário "Koyaanisqatsi (1982, Godfrey Reggio)", o qual acabo de rever em parte e que desencadeou-me uma série de pensamentos acerca do tempo, do instante, dos seres, do pensamento abissal, das diversas e difusas formas de vida e tanto mais que enreda-se quando se mexe em tal assunto.
Na imagem de um lançamento de foguete à atmosfera enxerguei uma considerável e extensa metáfora para tudo da ordem do que acabei de citar.
De sua base, o foguete dá partida, cheia de fogo, de potência.
Foguete, como um vulcão criado pelo homem; um vulcão-de-ferro, forjado, maquinado, enorme foguete como este que é mostrado em imagem-movimento, que dá espaço à imagem da vida que se desencadeia-se a cada momento quando se está atento às formas do tempo, do instante, do desenvolver-se dos seres no espaço e no momento.
A metáfora que nele vislumbrei é algo como a Vida em si, em toda sua existência e potência. Análogo ao nascimento da vida, tenho a partida do foguete.
Como uma criança que nela chega cheia de vontade inata de crescer, descobrir, ganhar o mundo e seu conhecimento, o foguete explode em fogo de combustível e força para decolagem.
Como um adolescente que sai da infância crendo que conhece um pouco mais do mundo, o foguete sai do chão, alça vôo, ganha altitude.
Como um jovem que sabe bem ficar de pé, se estabiliza um pouco no ar, na atmosfera abissal; até que começa a decair paulatinamente, como um adulto que aos poucos entrevê a velhice chegar em sua casa; começa a não ter mais tanto ímpeto de vida, começa a decair, a cansar-se, nauralmente.
Percebo-o criar um semi-círculo e após atingir o cume de sua decolagem, aliás, talvez um cume precoce, algo como um erro, não pretendido, e então começa decair, fechando antecipadamente o semi-círculo.
Há uma obediência à lei da gravidade; incia o passeio pela outra metade do semi-círculo descrito e chega cada vez mais perto do chão original, tão assim como um homem não pode fugir do tempo. Talvez algum infortúnio o levou a encurtar sua jornada, mesmo assim, naturalmente.
Há uma explosão, como um possível infarto do miocárdio de um homem ainda não tão velho, uma parada cardíaca; o foguete decai, perde altitude, perde massa física, como numa amputação.
O caminho tendendo ao chão de onde saiu instantes atrás; como um velho que viveu, viajou toda a vida, porém começa a retornar a sua terra natal, para quem sabe lá, descansar e por fim despedir-se.
O foguete não mais encontra forças; é agora apenas um pedaço do que fora instantes atrás; como um homem-pedaço, já velho e fraco. Pedaços do mundo, pedaços de palavras, pedaços de momentos, pedaços de pessoas, como todos somos ao longo do tempo.
O foguete é visto em câmara-lenta, vagarosamente, já perto do chão; um homem cansado, envelhecido, pequeno novamente, como a volta a infância, porém sem as virtudes anteriores do desejo e da disposição pelo novo.
Morte. O foguete morre, para no tempo, apesar de ainda planar no ar como um homem que vive como uma recordação no tempo. Sem forças, apenas com lembranças de instantes anteriores, de sua força que já não mais se mostra tão à mão, que já não mais é presente. O tempo presente agora se reverte numa recordação, traduzindo o termo "passado" em recordação-presente. Proximidade do fim, iminente, austero, absurdo; numa espera continuada, porém finita. Outras formas virão, e dá-se espaço ao novo ao passo que o anterior se esvai no tempo, no espaço, no labirinto da existência. Sucessivamente continuada, bela. Numa metáfora do tempo, linear ou circular, que seja! Numa metáfora da Vida, longa e breve, temporal e instantânea; Antes num desejo de vida permeado de esperança-presente, comumente conhecida pelo conceito de "futuro".
Instanteneamente transformada em recordação-presente, traduzida pelo conceito de "passado". Se mesclando, se balanceando e dando lugar apenas e tão somente à noção de presente, onde tudo que se têm é o instante, onde a vida é vivida na eternidade do momento, instintiva e continuadamente circular.




marcus.
recife, março/2009.

* Phillip Glass acompanha musicalmente os trabalhos de Reggio não só na trilogia Qatsi, mas também no curta-metragem Evidende (1995, Godfrey Reggio - 8 minutos) e no Anima Mundi (1992, Godfrey Reggio - 28 minutos).

sexta-feira, 27 de março de 2009

Evidence (1995), curta-metragem de Godfrey Reggio.


Filmado em Roma, mostra o rosto de crianças ao assistirem televisão (segundo informações que busquei, assistiam Dumbo, desenho da Walt Disney).
As expressões são singularíssimas.
O diretor (Reggio) fez uma série de documentários (longa metragem) intitulados "Koyaanisqatsi (1982)", "Powaqqatsi (1988)" e "Naqoyqatsi (2002)". Filmes sem atores e sem voz, com uma trilha sonora belíssima e envolvente; mostra aspectos e fenômenos da natureza e das criações humanas, fazendo um entrelaçamento entre o tempo e os acontecimentos. Reggio coloca imagens de um vulcão em erupção após ter mostrado uma nuvem em tempo rápido se moldando em fractais; um metrô em imagem rápida, uma cidade vista do alto com suas luzes e avenidas movimentadas que fazem uma alusão às veias do corpo humano, aos circuitos eletrônicos e impulsos elétricos; um organismo humano semelhante à uma cidade funcionando, à organização das formigas, ao balançar das ondas do mar; o sol nasce e se põe formando uma linha no céu em 2 minutos de imagem rápida. Um carro numa avenida movimentada vista do alto é como uma hemácia deslocada através da corrente sanguínea. As pessoas no mundo são como formigas movimentando-se continuamente num formigueiro em prol da sobrevivência.



marcus.






"No hall da estação se deu conta de que faltavam trinta minutos. Lembrou-se de repente de que num café da rua Brasil (a poucos metros da casa de Yrigoyen) havia um enorme gato que se deixava acariciar pelos clientes, como uma divindade desdenhosa. Entrou. Lá estava o gato, adormecido. Pediu uma chícara de café, adoçou-o lentamente, provou-o (esse prazer lhe tinha sido vedado na clínica) e pensou, enquanto alisava o pêlo negro, que aquele contato era ilusório e estavam como que separados por um vidro, porque o homem vive no tempo, na sucessão, e o mágico animal, na atualidade, na eternidade do instante."

Jorge Luis Borges, fragmento do conto "O Sul", contido no livro de contos Artifícios (1944) (o mesmo que contém um conto chamado "Funes, O memorioso", acerca de um homem que, segundo o narrador, "sozinho tinha mais lembranças que terão tido todos os homens desde que o mundo é mundo". E mais adiante, "Funes apenas não se recordava de cada folha de cada árvore de cada morro, mas ainda de cada uma das vezes que a tinha percebido ou imaginado", sua memória "podia reconstituir todos os sonhos, todos os entresonhos. Duas ou três vezes tinha reconstituído um dia inteiro; não tinha duvidado nunca, mas cada reconstituição tinha exigido um dia inteiro." Para finalizar minha alusão ao que considero um dos melhores, senão o melhor, conto do escritor argentino fantástico, ainda sobre Funes, "meu sonho é como a vigília de vocês".)

Na realidade fantástica e labiríntica, onde o tempo é quase sempre circular e os instantes podem ser mais duradouros e interessantes que toda a história do tempo linear, entro em um mundo paralelo e sou engolido por um abismo da literatura fantástica e sapiente quando me dou a ler e compreender o que o velho Borges achou por bem colocar em seus livros.
Minha vontade, ao escrever isto, é de compartilhar tal maravilha com vocês, meus queridos queridos.




----------------------------------------------------------------------

divido a postagem ao meio e inicio aqui um outro tema.
este, resumo em uma frase e três imagens:
"Construção em abismo".























Las Meninas - Diego Velasquez. 1966.





















Escher.




















“O Atelier”, de Johannes Veemer - século XVII.



para finalizar, indico uma matéria sobre cinema (abrangendo outras artes) feita por um amigo, Dioguinho Luna, mais especificamente, sobre o filme "8 e meio" de Federico Fellini e sobre o conceito de "construção em abismo": http://acertodecontas.blog.br/cultura/sobre-fellini-oito-e-meio/ . Lá, Diogo desenvolve melhor o tema da construção em abismo e comenta as telas de Veemer e Velasquez, além de belamente falar sobre a obra-prima de Fellini.



marcus.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Humpty Dumpty

"- Não sei bem o que o senhor entende por "glória" -, disse Alice.
Humpty Dumpty sorriu com desdém. - Claro que você não sabe, até eu lhe dizer. O que eu quero dizer é: "eis aí um argumento arrasador para você".
- Mas "glória" não significa "um argumento arrasador" -, objetou Alice.
- Quando uso uma palavra -, disse Humpty Dumpty em tom escarninho - ela significa exatamente aquilo que quero que ela signifique... nem menos nem mais.
- A questão -, ponderou Alice - é saber se o senhor pode fazer as palavras dizerem coisas diferentes.
- A questão -, replicou Humpty Dumpty - é saber quem é que manda. É só isso."

Lewis Carroll.





algo sobre a linguagem, o signo, sua arbitrariedade.
acho que muito do que queria falar está bem explicito aqui.
e principalmente o início de uma discussão, talvez infinita, sobre linguagem, signo, lingua, comunicação, sentido, linguística, arte, literatura, etc.



marcus.

segunda-feira, 16 de março de 2009

não tenho tido muitas oportunidades de visitar as virtualidades (no sentido específico da internet; pois a outras virtualidades mais imagéticas, tenho sim visitado com frequência). aliás, tenho até lido um pouco rapidamente o que tem sido colocado aqui no blog.
em uma frase - tenho me emocionado com o conteúdo do mesmo. parece crescer, se aprofundar e criar raízes difusas no conhecimento, ou ao menos na busca por este último.
enfim, até escrevi algo no caderno (à mão mesmo, como já tem se feito tão pouco) para trazer e colocá-lo no blog, algo sobre a relação do sonho com a morte ou com a vida (a partir do escrito do amigo de morais).
porém, agora, escolho não continuar com minhas próprias produções de linguagem sobre o mundo, e sim, passarei a palavra a um grande expoente da literatura universal, que colocou bem a questão dos signos (e sua supressão) na realidade.

Fragmento de texto de Alice Através do Espelho, Lewis Carroll:
"Este deve ser o bosque", murmurou pensativamente, "onde as coisas não têm nomes". [...] Ia devaneando dessa maneira quando chegou à entrada do bosque, que parecia muito úmido e sombrio. "Bom, de qualquer modo é um alívio", disse enquanto evançava em meio às árvores, "depois de tanto calor, entrar dentro do... dentro de quê?". Estava assombrada de não poder lembrar o nome. "Bom, isto é, estar debaixo das... debaixo das... debaixo disso aqui, ora", disse colocando a mão no tronco da árvore. "Como essa coisa se chama? É bem capaz de não ter nome nenhum... ora, com certeza não tem mesmo!".
Ficou calada durante um minuto, pensando. Então, de repente, exclamou: - Ah, então isso terminou acontecendo! E agora quem sou eu? Eu quero me lembrar, se puder.



Encontrei este fragmento estudando linguística, algo sobre a teoria dos signos. Estava lá, no começo de um capítulo, como que uma síntese poética do que virá. Já iniciei interessado. Penso e tenho pena dos que estudam coisas sem sentido algum.




marcus.