"Enquanto não conseguirmos suprimir qualquer uma das causas do desespero humano, não teremos o direito de tentar a supressão dos meios pelos quais o homem tenta se livrar do desespero."
Antonin Artaud

sábado, 28 de março de 2009

Koyaanisqatsi (1982) - Godfrey Reggio



(Fragmento - 10min - do filme, que originalmente contém 86 minutos acompanhados pela vívida e indispensável trilha sonora do músico Phillip Glass*)

Achei por bem escrever algumas poucas e atabalhoadas considerações sobre um fragmento do filme-documentário "Koyaanisqatsi (1982, Godfrey Reggio)", o qual acabo de rever em parte e que desencadeou-me uma série de pensamentos acerca do tempo, do instante, dos seres, do pensamento abissal, das diversas e difusas formas de vida e tanto mais que enreda-se quando se mexe em tal assunto.
Na imagem de um lançamento de foguete à atmosfera enxerguei uma considerável e extensa metáfora para tudo da ordem do que acabei de citar.
De sua base, o foguete dá partida, cheia de fogo, de potência.
Foguete, como um vulcão criado pelo homem; um vulcão-de-ferro, forjado, maquinado, enorme foguete como este que é mostrado em imagem-movimento, que dá espaço à imagem da vida que se desencadeia-se a cada momento quando se está atento às formas do tempo, do instante, do desenvolver-se dos seres no espaço e no momento.
A metáfora que nele vislumbrei é algo como a Vida em si, em toda sua existência e potência. Análogo ao nascimento da vida, tenho a partida do foguete.
Como uma criança que nela chega cheia de vontade inata de crescer, descobrir, ganhar o mundo e seu conhecimento, o foguete explode em fogo de combustível e força para decolagem.
Como um adolescente que sai da infância crendo que conhece um pouco mais do mundo, o foguete sai do chão, alça vôo, ganha altitude.
Como um jovem que sabe bem ficar de pé, se estabiliza um pouco no ar, na atmosfera abissal; até que começa a decair paulatinamente, como um adulto que aos poucos entrevê a velhice chegar em sua casa; começa a não ter mais tanto ímpeto de vida, começa a decair, a cansar-se, nauralmente.
Percebo-o criar um semi-círculo e após atingir o cume de sua decolagem, aliás, talvez um cume precoce, algo como um erro, não pretendido, e então começa decair, fechando antecipadamente o semi-círculo.
Há uma obediência à lei da gravidade; incia o passeio pela outra metade do semi-círculo descrito e chega cada vez mais perto do chão original, tão assim como um homem não pode fugir do tempo. Talvez algum infortúnio o levou a encurtar sua jornada, mesmo assim, naturalmente.
Há uma explosão, como um possível infarto do miocárdio de um homem ainda não tão velho, uma parada cardíaca; o foguete decai, perde altitude, perde massa física, como numa amputação.
O caminho tendendo ao chão de onde saiu instantes atrás; como um velho que viveu, viajou toda a vida, porém começa a retornar a sua terra natal, para quem sabe lá, descansar e por fim despedir-se.
O foguete não mais encontra forças; é agora apenas um pedaço do que fora instantes atrás; como um homem-pedaço, já velho e fraco. Pedaços do mundo, pedaços de palavras, pedaços de momentos, pedaços de pessoas, como todos somos ao longo do tempo.
O foguete é visto em câmara-lenta, vagarosamente, já perto do chão; um homem cansado, envelhecido, pequeno novamente, como a volta a infância, porém sem as virtudes anteriores do desejo e da disposição pelo novo.
Morte. O foguete morre, para no tempo, apesar de ainda planar no ar como um homem que vive como uma recordação no tempo. Sem forças, apenas com lembranças de instantes anteriores, de sua força que já não mais se mostra tão à mão, que já não mais é presente. O tempo presente agora se reverte numa recordação, traduzindo o termo "passado" em recordação-presente. Proximidade do fim, iminente, austero, absurdo; numa espera continuada, porém finita. Outras formas virão, e dá-se espaço ao novo ao passo que o anterior se esvai no tempo, no espaço, no labirinto da existência. Sucessivamente continuada, bela. Numa metáfora do tempo, linear ou circular, que seja! Numa metáfora da Vida, longa e breve, temporal e instantânea; Antes num desejo de vida permeado de esperança-presente, comumente conhecida pelo conceito de "futuro".
Instanteneamente transformada em recordação-presente, traduzida pelo conceito de "passado". Se mesclando, se balanceando e dando lugar apenas e tão somente à noção de presente, onde tudo que se têm é o instante, onde a vida é vivida na eternidade do momento, instintiva e continuadamente circular.




marcus.
recife, março/2009.

* Phillip Glass acompanha musicalmente os trabalhos de Reggio não só na trilogia Qatsi, mas também no curta-metragem Evidende (1995, Godfrey Reggio - 8 minutos) e no Anima Mundi (1992, Godfrey Reggio - 28 minutos).

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