"Enquanto não conseguirmos suprimir qualquer uma das causas do desespero humano, não teremos o direito de tentar a supressão dos meios pelos quais o homem tenta se livrar do desespero."
Antonin Artaud

sábado, 11 de agosto de 2007

Porta Para o Infinito

Castañeda narrando uma de suas experiências com Dom Juan e Dom Genaro, no livro "Porta para o Infinito" (4° da série que descreve os ensinamentos de Dom Juan).

"(...) Tentei levantar-me e fui preso da mais absurda distorção sensorial. EU não tinha controle sobre meu corpo; na verdade, meu corpo nem parecia me pertencer. Era inerte; eu não tinha ligação com nenhuma de suas partes e, quando tentei levantar-me, não consegui mexer os braços e fiquei me contorcendo indefeso, de barriga para baixo, rolando de lado. O impulso de minhas contorções quase me fez dar uma volta completa, tornando a ficar de bruços. Meus braços e pernas esticados me impediam de virar-me e fui parar de costas. Nessa posição, vi de relance duas pernas de forma estranha e os pés mais distorcidos que jamais vira. Era o meu corpo! Eu parecia estar envolto numa túnica. A idéia que me veio à mente foi que eu estava experimentando uma cena de mim mesmo como aleijado ou inválido. Tentei curvar as costas e olhar para minhas pernas, mas só conseguia sacudir o corpo. Estava olhando para um céu amarelo, um céu de um amarelo-limão, forte e profundo. Ele tinha fendas ou canais de um tom amarelo mais profundo e uma porção de protuberâncias penduradas como pingos de água. O efeito total daquele céu incrível era arrasador. Eu não conseguia saber se as protuberâncias eram nuvens. Havia ainda zonas de sombras e zonas de diferentes tons de amarelo, que fui descobrindo ao mexer a cabeça de um lado para o outro.
Aí alguma outra coisa atraiu a minha atenção: um sol no zênite mesmo do céu amarelo, bem sobre minha cabeça, um sol fraco - a julgar pelo fato de eu poder olhar para dentro dele - que lançava uma luz calmante, branca e uniforme.
Antes de ter tempo de ponderar sobre todas essas visões extraterrenas, fui violentamente sacudido; minha cabeça pulava para diante e para trás. Senti que estava sendo erguido. Ouvi uma voz estridente e risadas e defrontei-me com um espetáculo realmente espantoso: uma mulher gigantesca, descalça. A cara dela era redonda e enorme. Seus cabelos negros estavam cortados no estilo pajem. Tinha braços e pernas gigantescos. Pegou-me e levantou-me, pondo-me em seus ombros, como se eu fosse um boneco. Meu corpo estava flácido. Olhei pelas costas dela. Tinha uma penugem fina em volta dos ombros e pela espinha abaixo. Olhando para baixo, dos ombros dela, tornei a ver aquele chão maravilhoso. Eu o ouvia ceder, elástico, sob o peso imenso dela e via as marcas de pressão que seus pés deixavam nele.
Ela me largou de bruços defronte de uma estrutura, uma espécie de prédio. Aí notei que havia algo de errado com a minha percepção de profundidade. Não consegui avaliar o tamanho do prédio, olhando pra ele. Em certos momentos, parecia ridiculamente pequeno, mas depois que eu, aparentemente, ajustei minha percepção, fiquei realmente maravilhado com suas propoções monumentais.
A moça gigantesca sentou-se a meu lado e fez o chão ranger. Estava encostado a seu joelho imenso. Ela cheirava a bala ou morangos. Falou comigo e eu entendi o que ela disse; apontando para a estrutura, ela me afirmou que eu ia morar ali.
Meus poderes de observação pareceram aumentar, quando venci o choque inicial de me encontrar naquele local. Reparei então que o prédio tinha quatro lindas colunas não funcionais. Nada sustentavam; estavam em cima do prédio. Sua forma era a simplicidade total; eram projeções longas e graciosas, que pareciam se estar estendendo até aquele céu assombroso, incrivelmente amarelo. O efeito daquelas colunas invertidas era de pura beleza para mim. Tive um acesso de êxtase estético.
As colunas pareciam ter sido feitas de um só bloco; eu não podia nem conceber como. As duas colunas da frente estavam ligadas por uma trave fina, uma barra de comprimento monumental, que, pensei, podia ter servido como parapeito ou varanda.
A moça gigantesca me fez deslizar de costas para dentro da estrutura. O telhado era negro e plano, coberto de furos simétricos, que deixavam passar o brilho amarelado do céu, criando os desenhos mais complicados. Fiquei realmente assombrado com a completa simplicidade e beleza alcançadas por aqueles pingos de céu amarelo aparecendo por aqueles furos preciosos no telhado e os desenhos de sombras que eles criavam naquele chão magnífico e complicado. A estrutura era quadrada e, fora de sua beleza tocante, ela me era incompreensível.
Meu estado de exaltação era tão intenso naquele momento que tive vontade de chorar, ou de ficar ali para sempre. Mas alguma força, ou tensão, ou algo de indefinível começou a me puxar. De repente, vi que estava do lado de fora da estrutura, ainda deitado de costas. A moça gigantesca se encontrava lá, mas com ela havia outra criatura, uma mulher tão grande que chegava até o céu e tapava o sol. Comparada com ela, a moça gigantesca não era mais que uma menininha. A mulher grande estava zangada; agarrou a estrutura por uma de suas colunas, levantou-a, cirou-a de pernas para o ar e largou-a no chão. Era uma cadeira!
Aquela percepção foi catalisadora; desencadeou percepções arrasadoras. Passei por uma série de imagens desconexas, mas que podiam figurar como uma sequência. Em lampejos sucessivos, vi ou percebi que o piso magnífico e incompreensível era uma esteira de palha; o céu amarelo era o teto de estuque de um quarto; o sol, uma lâmpada; a estrutura que provocara tal êxtase em mim era uma cadeira que uma criança virara de pernas para o ar para brincar. (...)"

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